Esta é uma história de amor.
Independente dos fatos que vocês estão prestes a ler, esta é apenas uma simples história de amor. Com princípio, meio e fim. Um doloroso fim.
Há alguns meses (semanas ou dias — não tenho mais noção de tempo aqui), eu me lembro de estar paralisado à frente do meu computador, pensando seriamente na vida e como ela estava sendo desperdiçada atrás de toda aquela papelada.
Em meu ponto de trabalho, podia ver alguns de meus colegas, com seus fones de ouvido, atendendo clientes, e odiando estar ali, se torturando por dinheiro.
Se eles soubessem que suas vidas estavam penduradas na beirada do lixo, provavelmente aquele escritório estaria vazio. A maioria teria ido pra casa, abraçar seus familiares, ou colocado uma bala na cabeça, com o cano encostado no céu da boca.
A bala giraria pelo cano e faria um túnel; destruindo parte do cerebelo; destroçando a cavidade nasal; triturando o cérebro; quebrando o crânio pela nuca e antes mesmo que ela pudesse varar o escalpo, aquele cidadão estaria morto. A parte do seu cérebro que não fosse danificada (provavelmente a responsável pela visão) seria capaz de ver dois segundos depois do acontecimento. Porém, a explosão da arma detonaria seus tímpanos e ele não escutaria o som do tiro. Antes que seu coração parar completamente, ele dispara; e seu último sentimento seria uma descarga de adrenalina. A adrenalina do suicídio.
Isso aconteceu.
O dia ‘Z’ não foi exatamente um dia, mas uns quatro. E nesse período, dois terços da população mundial estaria morta. Pelo menos é o que eu considero pela minha estatística, que pode ser um tanto furada. Mas quem liga pra isso?
Imagino que a epidemia tenha começado em algum lugar perto da minha cidade. Porque não fiquei sabendo de absolutamente nada até chegar em algum perto de mim.
Acredito que tenha atingido Gerald no segundo dia dos quatro dias ‘Z’.
Gerald era um dos funcionários do call center. Ele não atendia chamadas, apenas coordenava o setor de vendas. Era um sujeito meio gordo e muito alegre. Um verdadeiro líder.
O que de fato aconteceu foi que Gerald chegou do almoço dizendo que estava com uma dor de estômago violenta. E que tinha que ir ao banheiro urgentemente. Carlos, que estava com ele no McDonald’s, disse que achava que ele comeu um hambúrguer estragado.
Gerald correu para o banheiro, estava muito pálido e, enquanto seguia o seu caminho para o lavabo, escutamos alguns peidos e vimos a parte de trás da sua calça ficar escura e molhada. Gerald estava tendo uma diarréia na cueca — se é que ele usava alguma.
Gerald, correndo, pôs a mão na calça e depois na máquina de escrever antiga que fica em exposição na sala. As teclas ‘f’, ‘d’, ‘v’, ‘z’, ‘x’, ‘a’, e ‘s’ ficaram sujas de merda. Pra falar a verdade, eu estou usando ela pra escrever isso. Nojento.
Muitos que estavam em volta riram, outros reclamaram do cheiro e Anita até vomitou dentro da lata de lixo que ficava de baixo de sua mesa.
Eu não fiz nada, mas sabia que não podia ajudar. Acho que não rir foi uma grande contribuição.
Eis que ela entra na sala.
Sim, tem ‘ela’.
Lembra que eu disse que era uma história de amor?
— O que está acontecendo aqui? Que cheiro é esse? — Clarice tampou o nariz com a parte de trás da mão direita.
Clarice era a garota da minha vida. Mas ela não sabia disso.
Recapitulando…
Alguns meses antes do incidente com Gerald. Eu entrei no call center para ajudar os clientes do banco com procedimentos técnicos.
Fui fazer uma entrevista de emprego coletiva onde Clarice me escolheu… bom, eu e mais dois para trabalhar lá.
Ela, para muitos, não é muito bonita. Sua pele é muito branca, seu rosto tinha algumas pequenas espinhas. Ela era muito magra e era muito estilosa. Isso deve acontecer com todo mundo, mas sempre tem aquele momento em que você se sente atraído por uma pessoa aleatória e acaba pensando nela o dia inteiro.
Ela foi responsável por me treinar lá dentro.
O que foi muito bom, porque ela me matava de tesão. Me fazia delirar de verdade.
Certo dia, ela se abaixou do meu lado para me mostrar alguma coisa no meu computador. E de repente, bem do meu lado, eu consigo ver uma parte de seus seios dentro do decote. Eles não eram grandes, e o sutiã ficava até um pouco frouxo, mas eu fiquei vidrado.
Quando ela saiu da sala, eu esperei alguns minutos e corri para o banheiro. Antes de sair de lá, eu dei descarga para que todos achassem que eu estava cagando. Lavei as mãos e voltei para minha mesa de trabalho. Estava completamente aliviado.
Chegou um certo momento em que eu pensava tanto nela que simplesmente não sabia se minha fascinação era composta por amor ou desejo sexual… ou os dois. Eu não sabia. Eu a amava, podia dizer que a amava, mas não tinha certeza. Eu só queria leva-la para quatro paredes.
Essa fascinação era angustiante.
Não sabia o que fazer, o máximo que eu tive de algum relacionamento com ela foi através das minhas longas horas de masturbação.
Quer dizer. Eu queria algo a mais e queria convidá-la para sair ou algo assim. Mas tinha medo.
Eu sentia que ela não iria recusar. A galera do escritório não falava muito dela, ela não era muito atraente para maioria e ela sempre parecia meio solitária. Acho que iria gostar de se divertir um pouco.
Só que esse dia nunca chegava. Quando me aproximava para falar com ela o coração subia até o pescoço e eu corria. Muitos dos meus colegas notaram e sempre me incentivaram a tomar alguma atitude. Mas nunca dava certo.
Mal sabia eu que o inferno estava prestes a subir na Terra.
No dia em que Gerald se cagou todo aquele cheiro horrível de bosta subiu pelo escritório inteiro. Acho que todo mundo desligou o telefone.
Gerald estava gritando muito no banheiro. Vários começaram a rir. Quase todos no escritório (aproximadamente umas quarenta pessoas) estavam gargalhando. Até que…
— Noel — esse é meu nome pronunciado pela voz de Clarice, não parece tão ridículo quando ela fala — Podemos conversar rapidinho? — Ela foi puxando uma cadeira para muito perto de mim.
— Podemos, claro. O que manda — Quem nesse universo fala ‘o que manda’ para sua chefe gostosa?
— Bom, eu recebi um bilhete anônimo que diz que você… bem…
— Que eu… — Falei com minha barriga congelando.
— Que você tem… é uma palavra pejorativa, que eu não sei se posso usar.
— Pode falar.
— Bom… que você tem tesão por mim.
Aquele era o momento crucial. Eu não sabia se era algo ruim ou algo bom. Eu não saberia o que falar. Fiquei completamente sem palavras, a adrenalina tocou meu sangue.
Ela se levantou rápido ao ver meu desespero.
— Me encontra na garagem no final do expediente. — Aquelas palavras chegaram como música para os meus ouvidos. Clarice queria me ver na garagem no final do expediente. É óbvio que ia rolar algo a mais.
OBS: Quanto mais eu escrevo sobre isso, mais patético eu me sinto. Foda-se.
— OK! — Foi o que saiu. Ela balançou a cabeça, mordeu os lábios e saiu com a cabeça abaixada. Tentando esconder o rosto. Um jeito meio tímido.
Faltavam alguns minutos para acabar meu horário. Sete, para ser mais exato.
Eu olhava para o relógio digital na parede da sala. E os minutos eram como horas. Não passavam nunca. Tudo que eu escutava era aquele monte de sussurros de dezenas de pessoas falando pelo telefone e alguns gritos no banheiro. Gerald descarregando sua sorte na privada. E eu prestes a tirar a minha de dentro de Clarice. Meu sonho virou realidade.
O sinal finalmente toca.
Eu corro para a saída, a grande maioria das pessoas ficaram na sala, continuando seus respectivos turnos. Alguns saíram comigo.
Saí, fechei a porta da sala e fui para o corredor pegar o elevador. Apertei o botão umas quinze vezes. Era um longo caminho até a garagem (eu estava no 8º andar).
Estava com aquela sensação de “hoje vou transar”.
Ouvi uma gritaria dentro da sala do call center, parecia uma grande guerra. Naquele momento pensei que eram os rapazes contando piadas para si mesmo. Só mais tarde, naquele mesmo dia, que eu descobri que não eram piadas porra nenhuma.
O elevador abriu e fez um barulho: PIINNNN!
Eu entrei com mais alguns caras. Uns três ou quatro. Todos com seus fones de ouvidos, com as caras afundadas em seus respectivos celulares. Mas eu estava focado no painel de andares. Chega logo, chega logo.
Apertei o botão da garagem (G) e começamos a descer.
7.
6.
5.
5. Elevador para no 5.
Uma senhora entra.
Porta fecha.
4.
3.
2.
2. Elevador para no 2.
Caralho. Quem pega elevador para descer no segundo andar?
Uma perua, com roupas caras e salto alto entra. Com um óculos escuro na cara. Estava de noite.
Porta fecha.
Térreo.
A perua sai, junto com uns dois caras e a velhinha.
Eu fico. Junto com mais um cara.
Porta fecha.
G.
Porta abre e eu saio correndo. O cara fica pra trás e se dirige para um celta preto, que apita quando ele aperta o botão da chave.
Eu procuro por Clarice e, sem dificuldade, eu encontro-a. Do lado de seu carro.
Ela sorri para mim enquanto eu ando até ela. Nem percebi que ela estava num ponto meio escuro da garagem. Acho que ela colocou o carro lá de propósito. Para que as coisas fiquem apimentadas no escurinho. Não queria ter escrito isso, mas as máquinas de datilografar não têm backspace. E meu tempo pode estar acabando.
Meu pau ficou rígido. Muito cedo, não? Mas foda-se.
Fui até ela. Clarice me pediu para entrar no carro pelo lado do passageiro. Ela entrou pelo lado do motorista. Ela fica parada um pouco e…
— Acho que o banco de trás é melhor.
— Ok. — Naquele momento eu parecia o cara mais paciente do mundo, mas estava prestes a explodir.
Saimos do carro, fomos para o banco de trás.
Fechamos as portas. Estava num canto realmente escuro, acho que ninguém poderia ver a gente ali.
Ficamos nos encarando por um momento. Ela parecia muito nervosa e inquieta. Ela abria e fechava as mãos sobre o joelho. Aquilo meio que me acalmou.
Segurei as mãos delas. Eram macias e estavam suadas.
— Desculpa. — Ela sorriu — Eu tô meio nervosa.
— Percebi. — Falei com uma voz suave. — Fica tranquila.
Naquele momento eu estava com a autoestima do Don Juan.
Pus uma das mãos em sua nuca, atrás dos cabelos e a puxei para perto de mim com uma firmeza que fez meu pau virar pedra.
Nos beijamos por algum tempo. Eu estava muito feliz. Estava tendo espasmos de nervosismo e tremedeira.
— Nossa, você está tremendo muito, o que foi?
— Frio. — Falei, mas acho que não colou.
Ela não ligou. Nos beijamos mais um pouco e eu fui com minha mão direto em um de seus seios. Ela não reclamou.
Sua mão foi direto no meio da minha calça jeans. Ela agarrou meu ‘revólver de calibre médio’.
Quis fazer o mesmo. Minha mão entrou por baixo de sua saia e encostei em sua calcinha.
O clima foi esquentando cada vez mais, tirei seu vestido. Ela tirou minha camisa e tirei minha calça. Estavamos apenas com roupas íntimas. Se agarrando no banco de trás daquele carro.
Ela pôs as duas mãos nas costas e tirou seu sutiã (era meu dia de sorte, não sei tirar sutiãs).
Eu finalmente vi aqueles seios por completo. Eram pequenos, mas eram lindos. Estava um pouco escuro mas um flash de luz iluminava um de seus mamilos. Eram bem rosados e pequenos. Começamos a nos agarrar e quando percebemos já estávamos os dois completamente nus.
Aquele dia seria o primeiro dia do resto da minha vida. Até foi… mas não de um modo bacana.
Clarice parou um pouco, abriu o vidro pela manivela, se ajoelhou no banco e se debruçou na beirada da janela com a cabeça para a parte de fora.
Eu entendi o recado. Estava pronto para começar.
Me ajoelhei atrás dela e começamos a transar naquela posição mesmo.
Nem tinha percebido que um alarme de um carro tocou na garagem. No momento não pareceu importante.
Tinha perdido toda concentração do mundo exterior. Eu fechei os olhos, apreciando cada movimento, cada gemido dela, cada parte daquele corpo.
Ainda naquela posição, coloquei meus braços em torno da barriga dela e comecei a beijar suas costas.
Beijar muito, e com o movimento acelerando cada vez mais.
Ela não está gemendo mais e mesmo assim continuo acelerando o movimento até que eu paro e concluo o ritual dentro dela.
Ela não estava gemendo mais.
Levanto minha cabeça, com meu órgão genital ainda dentro de Clarice, e me fico paralisado com o que vejo.
Um tipo de monstro enorme, musculoso, com a pele completamente vermelha está parado do lado de fora do carro. Sua respiração era pesada como a de um dragão. Eu não tô de sacanagem, não sei que porra era aquilo.
Não consigo ver o rosto dele, justamente por passar da altura do carro.
E Clarice…
Uma das mãos do monstro está segurando o pescoço de Clarice, que está com a cabeça para fora do carro. Aquela criatura aperta o pescoço dela tão forte que o espreme como se um homem espremesse uma banana.
Sangue fresco escorre entre seus dedos.
Meu orgão genital amolece em ‘nível oriental’ e eu tiro de dentro dela.
Eu começo a gritar, me escorando na porta oposta do banco de trás.
Lentamente, o monstro começou a puxar a cabeça dela para fora. A cabeça de Clarice foi se separando do corpo lentamente. Dava para ouvir o som pingando no chão, a pele rasgando, e os músculos arrebentando.
Aquilo não podia estar acontecendo. Era aterrorizante e naquele momento eu não pude acreditar.
O monstro estava decapitando Clarice, puxando sua cabeça para fora. Eu podia ver sua coluna vertebral saindo junto com o crânio. Vi o rosto morto dela, os olhos estavam revirados, sua língua estava para fora da boca, e a outra extremidade pendurada pelo pescoço.
Abri a porta do carro e num impulso saí correndo pelo estacionamento. Olhei brevemente para trás e vi que o monstro estava devorando o cadáver de Clarice. Olhei e ele estava com as calças sujas.
Puta merda.
Aquele era Gerald.
O que aconteceu com ele?
Não sabia no momento.
Comecei a subir pela escada do prédio, enquanto via um enorme rastro de destroços humanos. Muitas pessoas eram do escritório do call center. Algumas estavam dilaceradas. Parecia que tentaram fugir. tinha tripas na parede e eu quase escorreguei em algo que parecia um macarrão à bolonhesa enquanto subia pela escada.
Fiquei com medo.
Voltei para a sala do Call Center e lá estava aquele mar de corpos. Um dos meus colegas, Richard estava vivo, mas partido no meio, tentando se mover. Eu não consegui aproximar. E Richard me viu.
— Fog-g-g… - E caiu de boca aberta no chão. Quebrando alguns dentes no impacto.
Eu tava todo mijado. Corri para a porta e tranquei. Em alguns minutos, quase todos os móveis seguravam a porta e eu já estava chorando, pensando em tudo e em todos.
Duas horas se passaram e não tinha ruídos do lado de fora, mas mesmo assim eu sabia que não teria coragem para sair dali.
Conferi a geladeira, tinha o jantar de alguns de meus colegas, o que era bom, mas a energia foi embora alguns dias depois e racionar ficou difícil.
Não se passou muito tempo assim, mas parece que foi muito mais do que eu vivi. Chorei algumas vezes, é muito depressivo ficar em uma sala cheia de cadáveres fétidos. Comecei a delirar com a fome. Tentei comer o fígado de um dos meus colegas enquanto estava delirando. Mas vomitei logo em seguida. Não por ser um fígado humano, mas estava podre. Podre pra caralho.
Minha consciência voltou quando eu achei algumas caixas de biscoito na gaveta da mesa da Marta. Foi uma benção.
Hoje, no dia que eu escrevo isso, já se passaram vários dias desde a morte de Clarice. Estou no escritório. Na máquina de escrever. Eu já havia preparado para sair amanhã, mas a merda tocou o ventilador. Percebi que vários deles invadiram o prédio e posso escutá-los no corredor, escrevo na iminência de minha morte e deixo meu infeliz relato nesse papel, a lição é a seguinte: em meio a um mundo de desgraça, pode existir o amor, mas o amor não me salvou, apenas adiou minha morte. Agora, eu sei que é apenas uma questão de tempo até qu