Inspire-se, jovem!

quarta-feira, 2 de agosto de 2017

MANUELA - UM CONTO DE DANIEL OLIVER

 
  
MANUELA

Conto de Daniel Oliver

OBS: Este conto é uma obra de ficção, seus personagens são fictícios, quaisquer semelhanças com a realidade (com exceção das referências diretas de pessoas e marcas) deve ser considerado como mera coincidência. 

O interfone do meu quarto toca.
    Neste momento, estou deitado na cama, passando o tempo em meu Instagram, tentando responder aos comentários e marcações legais dos fãs.
Sempre tento tirar um tempo para eles. Na maioria do tempo eles são muito carinhosos. Ontem mesmo, quando cheguei ao hotel sem fazer nenhum tipo de reserva, o balconista ficou pasmo ao me ver em sua frente.
Sério, o rapaz começou a tremer igual vara verde (sei lá o que isso significa).
— Gostaria de um quarto, bom jovem. — Eu já sabia o que estava acontecendo. E vou admitir, isso sempre me deu prazer.
— Tenácio Soares? É você mesmo?
Em um gesto brincalhão, olhei para mim mesmo para conferir.
— Até onde eu sei… — E foi a mesma história de sempre, o garoto fez meu check-in e pediu, posteriormente, para tirar uma foto comigo. Eu não jamais nego uma foto ou um autógrafo quando um admirador aparece com uma edição de algum livro meu.
Enfim. Eu atendo o interfone.
Justamente o que eu esperava, o garoto da recepção (que me trata formalmente por Sr. Soares) diz que meu motorista chegou.
Vesti meu blazer da Giorgio Armani que comprei semana passada em Ibiza, exclusivamente para esta ocasião. conferi meu rosto no espelho, as roupas, o sapato… impecável. Coloquei meu celular no bolso interno do blazer e sai do quarto, trancando-o com um cartão.
Descendo pelo elevador panorâmico interno do hotel, comecei a pensar no quanto eu gostava daquele ambiente acolhedor que apenas hotéis tinham. Sempre maravilhoso e pacífico.
    Pelo lobby, caminhei em direção à recepção. Uma senhora se preparava para fazer check-in. Entreguei o cartão-chave do meu quarto para o rapaz. A senhora, agora ao meu lado, olhou para mim com admiração e espanto.
    — Você não é aquele jovem do Nobel Literário? Senhor Soares? — Ela sacudia o dedo indicador como se tivesse me pegado em flagrante.
    — Sim, sou eu mesmo. — Falei tentando parecer agradável. — Aquela moedinha de ouro insignificante.
    Ela riu, assim como o rapaz do balcão.
    — Não, meu jovem, você é um orgulho para nosso país. Graças a você, o Brasil tem reconhecimento internacional dentro da literatura. É como se você fosse um José Saramago brasileiro. Tá até com filme em Hollywood.
    — Agradeço a admiração, moça. — Ela já foi moça, há muito tempo. — São pessoas como você que me inspiram a fazer minhas obras e fazer alguma diferença na vida das pessoas.
    Sem me prolongar muito, pedi licença e saí do hotel. Pedro, o motorista, esperava-me em pé, ao lado do meu Rolls Royce preto, que ganhei de presente da Rainha da Inglaterra ano passado, só porque ela adorou o meu presente (licor de kiwi).
    — É,Pedrão, é por isso que eu sempre confio em você pra tomar todas as decisões. Esse “RR” vai causar. — Ele foi abrindo a porta de trás para mim.
    — Eu sei que é o seu favorito, Senhor Soares. — E era mesmo.
    — E é. — Parei antes de entrar no carro. — Hoje eu vou no banco da frente, meu amigo.
    — Sim, senhor. Você quem manda. — Dei um tapinha no ombro dele e ele retribuiu com um sorriso. Fechou a porta do carro e assumiu o volante enquanto eu entrava do lado do passageiro.
    Pedro ligou o Rolls Royce.
    — Já sabe o destino, Pedrão? — Fui abrindo o porta-luvas do carro.
    — Sei sim, Senhor, é o mesmo do ano passado.
    — Verdade, dezesseis anos indo no mesmo lugar e ainda não decorei o endereço.
    Tirei o convite do porta-luvas.
    — Senhor…
    — Tenácio, Pedrão, para de me chamar de senhor. Não sou tão velho assim.
    Meus olhos estavam no convite.
    — Rua José Osvaldo de Araújo, tava na ponta da língua. Prometo que não esqueço mais. — O Rolls Royce já estava à caminho, Pedro riu e disse:
    — Tenácio, porque você não ficou no triplex, lá na zona sul? Quero dizer… Seria bem melhor do que ficar em um hotel.
    Suspirei.
    — Ah, cara, gosto de ficar em hotéis. As minhas maiores obras foram escritas em hotéis. Eles tem um clima aconchegante, pacífico, igual a casa da Vovó Jurema, só que bem melhor. O prefiro ir pro triplex quando vou ficar mais tempo na cidade, amanhã de noite tenho que pegar o voo para Milão. A galera da Victoria Secret me chamou para ser jurado em um desfile no domingo.
    Entendi, Senh… digo… Tenácio. — Pedro sorriu sem tirar os olhos da direção. — Quem pode, pode.
    — Só vim mesmo para ir à festa da Manuela. Tenho que marcar presença, ela é minha prima. Família, sabe?
    — Claro que sei — resmungou Pedro.
    — Falando nisso, o Tim mandou o presente dela? Nem consegui conferir isso, tanta coisa que tive que fazer. Acabei esquecendo.
    — Sim, senhor. O presente está no porta malas. O Sr. Cook fez questão de embrulhar pessoalmente. E ele mandou um abraço.
    — Tim, Tim. O cara é gente fina demais.
    O Rolls Royce atravessa um sinal verde. Parece que ainda vai demorar mais um pouquinho pra chegar.
    — Senhor. Tenácio… Se posso perguntar, qual é o presente que você comprou pra Manuela?
    — Claro que pode perguntar, Pedrão. Eu eim. Então, quando fui convidado pro aniversário, eu pedi o Tim, o CEO da Apple, se seria possível eu comprar a próxima versão do iPhone antes do lançamento oficial, que vai ser semana que vem, lá na loja oficial da Apple em Nova Iorque.
    — O Senhor está dizendo que a próxima versão do iPhone, que ninguém do mundo teve acesso ainda, está no porta malas deste carro. E você vai dar ele pra Manuela? A pestinha da sua prima Manuela?
    — Exatamente.
    Pedro pareceu confuso, e me olhou com aquela cara de sermão.
    — Ok Pedro, entendo o porquê de você estar bolado. A menina é um porre, eu sei. Mimada e metida e mimada e malcriada.
    — Senhor, eu sei que ela é parente e tudo mais. Mas com todo o respeito, ela não merece nada do que ela tem. Ela é mesquinha e não da valor a nada. Se acha superior aos outros.
    — Eu sei — Suspirei de novo, olhando para fora do carro. — Mas se for parar pra pensar, a culpa não é dela. Mas dos pais dela.
    Pedro assentiu, com aquele ar de “é, se bem que é verdade”.
    E era verdade. O primeiro indício de que essa criança seria nojenta, foi quando a mãe deu o nome dela de Manuela. E com respeito às Manuelas que estão lendo isso, não acho que seja um nome feio, sem significado. Resumidamente, o nome “Manuela” significa “Deus Conosco”, pois é o feminino de Manuel.
    Todavia, eu não acho que a mãe dela, Tia Marta, deu esse nome por este significado. E por que eu acho isso? Bom. Quando viramos romancistas, passamos a observar o mundo de forma diferente, como se tudo fosse uma potencial história a ser contada. Verificamos detalhes, e minúcias que nos aparecem ao longo da vida. A Tia Marta, grávida de Manuela, a garota que comemora hoje seu aniversário de dezesseis aninhos, deu este nome para ela. Até aí, tudo bem. Só que a coisa começou a ficar ridícula quando ela não se referia à filha mais por este nome, mas pelo seu apelido — Manu.
    Não está entendendo? Antes da “Manu” nascer, Tia Marta só falava coisas como “Nossa, que lindo esse presente que você comprou pra Manu” ou “Nossa, a Manu só vai usar rosa”.
    Consegue perceber?
    Não?
    A garota só se chama Manuela porque a mãe dela achou que o apelido Madu soa bem. Essa teoria se confirmou nos últimos dezesseis anos. Tia Marta só chama Manuela por “Manu”. Quando eu chamo a garota de Manuela, cara, você tem que ver a cara dessa peste, parece que eu tô xingando ela.
    Ao longo dos anos, desde que “Manu” era pequena, a mãe dela não chamava atenção da garota quando ela fazia coisas erradas. E o pai dela, Tio Lúcio, que estava sempre trabalhando, só aparecia para ser o amigão da filha, quase nunca o educador. Ele até chamava a atenção dela quando ela fazia coisas erradas, mas pedia desculpas para a filha quando ela começava a chorar.
    Lamentável.
    Mas a pior era a mãe. Ela não tinha controle nenhum sobre a filha. Meu amigo, eu nao to brincando quando eu digo que quando eu, por exemplo, chamava a atenção da Manuela por fazer algo errado, Tia Marta vinha como uma cadela raivosa pra cima de mim, como se fosse eu quem tivesse que ser corrigido.
    Parece piada não é? Eu sei.
    Infelizmente não é.
Existiram muitas situações que fizeram meu sangue ferver. Uma delas foi quando a pequena Manuela gostou de um cubo mágico que eu tinha. O brinquedo era realmente maravilhoso, era profissional, e era uma edição limitada em que as cores eram fluorescentes e brilhavam no escuro. Poucas pessoas tinham ele, e era completamente difícil de achar para vender. Eu tinha ganhado de um velho amigo que se mudou para outro país, e ele significava muito pra mim como valor sentimental.
A pestinha adorou o brinquedo. Ela tinha uns cinco anos de idade e já era o capeta. Ela perguntou se eu poderia dar o brinquedo para ela. E por mais que eu não ligasse de dar minhas coisas para quem gostasse delas, eu não podia dar aquele brinquedo para Manuela. Afinal de contas, eu o ganhei. Não é certo dar um presente que outra pessoa te deu. Principalmente quando tem valor emocional.
Enfim, eu tentei explicar pra coisinha que eu não podia dar aquele cubo mágico para ela.
E o que ela fez? Correu para a mãe, que estava na sala, conversando com minha outra tia.
    Manoela falou com Tia Marta que ela queria o brinquedo, eu expliquei à minha tia que não poderia dá-lo, pois tinha significado pra mim. Minha Tia Marta fechou a cara na mesma hora e cagou a seguinte frase para a filha “Filhinha, ele tem que te dar o brinquedo sim, eu falei tá falado”. Aquela frase veio no som de teste, eu senti.
Meu sangue ferveu.
Eu disse “Não, eu já disse que eu não posso dar e ela não vai ter”. E estendi minha mão para que Manuela me entregasse meu cubo mágico. E foi que Manuela, a criança mais insuportável que eu conheci, disse o seguinte “Minha mãe falou que você tem que me dar, então ele é meu agora”.
    Tia Marta deu aquele sorriso de orgulho, o mesmo de quando o filho fala a primeira palavra. “Que orgulho dessa minha filhinha, olha como ela é esperta”. Ela ficou com aquele sorriso amarelo até perceber que eu tava falando sério. Minha outra tia só observava. Sem dizer uma palavra. Tia Marta começou a me xingar e me chamar de mesquinho na frente da filha.
    Neste momento, pensei em todos os brinquedos que Manuela tinha, e como ela tinha o que quisesse da loja de brinquedo, bastava apontar e o pai comprava. Sempre, sem exceção. Pensei em como o ato de ganhar um brinquedo para ela era algo sem significado nenhum.
Era simples: Manuela ganha um brinquedo, brinca com ele dois dias e o joga na pilha de brinquedos. Espera o próximo final de semana, e ganha mais alguma coisa do pai. Esse é o ciclo.
Mas algo tinha acabado de acontecer, a pequena Manuela queria um brinquedo que ela não podia ter. Naquele momento, aquele brinquedo não estava na jurisdição do pai ou da mãe. Eu sei que se eu desse aquele cubo mágico para Manuela, ele iria fazer parte da pilha de brinquedos em menos de dois dias. Logo aquele cubo que significava tanto pra mim.
Tia Marta, com relutância, e sem perceber o quanto ela estava sendo uma grande de uma ridícula, tirou meu cubo mágico da mão de Manuela, que fez birra até soltar.
    A capetinha ficou com cara de raiva para mim e para a mãe (se é que podemos chamar assim).
    — Senhor? — Pedro me fez despertar de um devaneio. — Está tudo bem? Ficou calado de repente.
— Tive um devaneio, Pedrão.
— Estamos quase chegando.
— Ótimo.
— Senhor?
— Diga, Pedro.
— O Senhor escreveu a trilogia “Linhas do Amor” …
— Escrevi.
— Digo, todas essas meninas adolescentes de hoje te conhecem. Quero dizer, você é idolatrado por elas por causa dessa saga.
    — Onde quer chegar?
— Você não acha que pode ser perigoso na festa da Manuela?
— Claro que não, Pedro. Por que seria?
— Lembra daquela garota do Aeroporto de Lisboa? Ela ficou louca, cara. Ela quase literalmente arrancou seu braço.
— É, tive que fazer uma cirurgia no ombro e fisioterapia por cinco meses até recuperar completamente.
— E se as garotas ficarem loucas hoje também?
— Ah, se ficar, ficou. Todos têm seus riscos de profissão. Motoristas podem bater o carro, pilotos podem derrubar o avião, eletricistas podem tomar choque, e eu… bom, posso ser esquartejado por uma multidão de adolescentes loucas.
Pedro deu uma gargalhada.
    — Bem colocado, Senh…
Olhei para ele rapidamente.
— Tenácio — Ele corrigiu a tempo.
Passaram-se alguns minutos e nós estávamos nos aproximando do salão de festas. Um letreiro enorme, com o nome “Manuela”, feito com balões prateados, decorava a fachada. Uma foto enorme de Manuela estava na entrada, com uma moldura dourada. Algo que qualquer menina iria morrer de vergonha, por ser pura breguice, mas ela adorava.
Manuela, desde pequena, aprendeu a ser metidinha a rica. E se julgar superior por isso, consequentemente. Mas aquilo fervia o meu sangue. A menina é tão enjoada que ela pediu para debutar como americana (aos 16 anos, ao invés dos 15 — como seria no Brasil). “Não quero ser igual a esses mortais”, dizia isso em um tom que parecia brincadeira, mas não era mesmo.
Manuela não era uma menina bonita, mas era bem produzida. Seus pais gastavam, literalmente, centenas de reais por semana para que ela pudesse desenhar um rosto mais bonito em cima do dela. Seu rosto era muito magro e o cabelo extremamente oleoso; os dentes eram um pouco pra frente. Mas tudo herança do pai. E o pior de tudo, ela tinha aquele sorriso de leite azedo que eu não suportava.
A mesma foto que estava no convite estava na moldura dourada.
Olhei para o convite em papel vergê e vi um detalhe que não tinha reparado, bem ao lado da foto. A seguinte frase “favor não ir de roupas brancas, para evitar compatibilidade com a roupa da aniversariante”.
Quase vomitei no tapete do meu Rolls Royce.
Mostrei a frase para Pedro. Ele balançou a cabeça em negação.
— É Pedro, vou beber pra tentar me divertir. Só assim, cara.
— Senhor, não entendo como pessoas assim se sentem melhores do que as outras.
    — Também não.
— Tipo, você lembra da festa do Lionel Messi, lá em Barcelona? Esse cara tem motivo real para se gabar de todas a grana que tem e ele é  muito mais humilde do que muitos “pseudo ricos” aqui do Brasil.
— Falou tudo, Pedro. O que importa é a humildade. Mas as pessoas começam a se reconhecer pelo “ter” e não pelo “ser”. Garanto que o Messi pagaria dez festas desta à vista, e não parcelado em trezentas vezes no crédito, como essa galera faz. Não to desmerecendo a condição inferior deles, mas eles agem como se fossem a nobreza. É bastante ridículo mesmo.
Pedro parou o Rolls Royce na entrada do evento. Um carro parou atrás e quando saiu do meu carro, vi duas garotas saindo do carro de trás. Ambas pareciam ter dezessete ou dezesseis anos. Elas olharam pra mim, já sabia.
    As duas ficaram paradas um momento, achei que iriam gritar, correr e tropeçar nos saltos altos, mas elas vieram até mim bem devagar, com o queixo lá no chão.
    — Tenácio Soares! — Falou uma delas, a outra permaneceu em silêncio.
— Meu nome — Eu ri com simpatia.
— Está é minha irmã — Estranho ela apresentar a irmã. — Ela não consegue falar, mas ela é uma grande fã sua, leu todos os seus livros. Eu li a trilogia Linhas do Amor, oito vezes. Mas essa daqui — Ela abraçou a irmã que parecia tímida e pasma ao mesmo tempo — essa é sua fã numero um.
A garota muda começou a fazer alguns sinais em libras. Não consegui entender, mas a irmã prosseguiu.
— Ela pediu pra dizer que você salvou a vida dela, ela ia se matar quando tinha depressão, mas seus livros foram o que fez ela desistir.
    A menor fez outro sinal com as mãos.
A irmã explicou de novo:
— Ela disse “Obrigada”.
Essa me pegou de jeito, senti uma lágrima querendo sair. Olhei para ela e falei:
— Eu quem agradeço, moça. — E perguntei: — Você gosta do livro “O Garoto da Jaqueta Marrom?”.
Ela balançou a cabeça sorrindo.
    — Pedro, pega o exemplar no porta malas do carro, por favor.
— Senhor, mas aquele não era a edição autografada para o Leonardo DiCaprio?
— Era, mas o Sr. DiCaprio pode esperar.
Pedro me deu o livro. Peguei a caneta, risquei a dedicatória do DiCaprio com uma linha fina e fiz uma nova.
— Qual o seu nome?
— Maria.
— … Para Maria, que me conquistou em silêncio. — Fechei o livro e entreguei para ela. A pequena sorriu e me abraçou.
— Agora vamos tirar uma foto? — Perguntei.
— Claro. — Falou a única irmã que falava.
Selfie.
Pronto. As garotas subiram. Peguei o presente de Manuela no porta malas do carro, agradeci Pedro.
— Ligue quando sair, Senhor.
— Pode deixar, Pedrão.
O momento chegou.
Estava na hora de entrar na festa. Segui em direção à entrada, o porteiro olhou para mim.
— Nome, por favor. — O homem perguntou.
— Tenácio Soares.
— Nossa, não achei que esse fosse seu nome de verdade, achei que era um pseudônimo.
Eu ri, meio sem graça.
— Não, não é pseudônimo.
Ele indicou a entrada.
— Seja bemvindo Sr Soares.
— Obrigado.
    Enquanto eu subia as escadas para o salão principal, tocava “Humble”, do Kendrick Lamar. Ao chegar no topo das escadas, eu não queria nem olhar. Olhei no meu Rolex, eram sete e quarenta e três da noite.
    Levantei o olho quando a multidão ficou em silêncio e passou a me observar. Eu via senhoras comentando com as netas, adolescentes comentando entre si e dando gritinhos abafados. Alguns se perguntavam “é ele?” e uns “é ele mesmo”. Um grito atravessou a multidão, era Manuela.
    — Primo, primo, primo. Você veio. E correu com aquele vestido branco para me abraçar. Não era tão caro quanto meu blazer. Acho que meu blazer comprava dois ou três daquele. E o Rolex pagava a festa, com direito a uma garrafa de Ciroc de brinde para cada um dos convidados, mas é claro que esse tipo de coisa não era do meu interesse esbanjar.
— Claro que vim, toma — E entreguei a ela o presente.
— O que é? — Ela perguntou ao ver o embrulho.
— Um iPhone — Falei olhando para a multidão que me encarava.
— Ah, que pena, Tenácio. — Disse ela fazendo uma cara de indiferença e decepção. — Eu já tenho um iPhone, meu pai me deu o melhor que existe?
— Seu pai conhece Tim Cook?
— Quem é esse cara? Que nome engraçado. — Ela riu. A multidão ainda continuou a me olhar.
— Ninguém importante. — Falei
— Tenácio! — Ouvi a voz da Tia Marta. — Fiquei com medo de não aparecer.
Engraçado! Quando eu era mais novo e vinha as festas você me convidava quase que por obrigação.
— Por que eu não viria? — E olhei pra algumas garotas abanando o rosto com a mão e olhando pra mim. Issa estava ficando desconfortável.
— Vamos tirar uma foto?
— Mãe?? — falou Manuela — Ele trouxe um iPhone. Eu falei com ele que já tenho, o que faço com esse?
Tia Marta olhou pra mim.
— De para alguma amiga sua que não tem, mas sempre quis ter. — Falei, me divertindo por antecipação.
Tio Lúcio apareceu no meio da multidão e veio me cumprimentar.
— Tenácio, meu brother! Como vai você? — Ele chegou perto e me abraçou. Ele já tinha bebido uns Jack Daniel’s Honey. Ele olhou pra multidão parada. — A festa morreu, galera? Vamos continuar. Tenácio tá vivo. É meu caro, acho que essa galera te ama.
— Nada, impressão sua. — Falei, com extremo desconforto de estar ali.
— MÃE! — Manoela gritou grosseiramente. Tia Ana olha com um sorriso, como se a falta de educação da filha fosse completamente normal. Manoela mudou a raiva para um sorriso doce, como água pro vinho. — Pra quem posso dar o iPhone?
— De pra Felícia! Ela é meio pobrinha, né? — disse Tia Marta, e riu, Tio Lúcio riu, Manoela, riu, eu não. Eles riram com aquele ar de “gente, alguem segure minha língua”.
— Não, Mãe! Na casa dela não deve ter nem tomada para carregar o celular. — E Tia Marta riu, tomando cuidado para não parecer que estava achando graça.
— Filha, menos!
— Mas é verdade, Mãe. As meninas da escola nem gostam de andar com ela. Só convidei de dó mesmo. — Tia Marta já ria sem graça.
— Pois eu acho que você devia dar ele pra Felícia. — Falei rapidamente.
— É filha, somos ricos. — Falou Tio Lúcio. — E você já tem o melhor iPhone daqui. — E fez uma péssima representação cômica de um homem nobre.
Manoela olhou para o pacote. Com uma cara de alívio.
— FELÍCIA! — Gritou Manuela. — Vem cá.
A garota apareceu com um vestido bonito, bem minimalista, da cor roxa, os estilistas de Milão classificariam como uma moda constante. Já diziam “Menos é mais”.
Um garçom passou oferecendo um champanhe bom, de uma safra nada acessível, porém bem comum nos mercadinhos de Paris. Eu bebi em uma virada só.
— Toma, É um iPhone, o primo Tenácio me deu, mas eu já meio que ganhei o melhor. — Manuela passou a embalagem para Felícia.
— Sério, Manu? — Felícia ficou pasma.
— Sim, tô me sentindo generosa hoje. — Disse com aquele jeito esnobe que ela tem desde criança.
A outra gritou de alegria.
— Eu não acredito. Obrigada, obrigada, obrigada.
— Pois não. — Disse Manuela com arrogância.
Tia Marta se virou pra mim.
— Vamos tirar uma foto? — Foto? Sério? Quando eu era mais novo e me procurava no álbum de fotografias da festa da Manu eu estava no cantinho de uma das páginas. Agora você quer tirar uma foto comigo? Estranho, eim?
— Claro — Falei.
O fotógrafo clicou.
Flash.
Um grito cortou o salão. Veio de Felícia.
Ela abriu a caixa, e olhava para dentro dela como se tivesse uma barata lá. Sem conseguir falar, um dos garotos de terno veio olhar porque ela estava paralisada.
— Não é possível. — Falou o garoto.
— O que? — Perguntou Manu. — O que foi?
O rapaz de terno olhou pra Manu.
— É a próxima edição do iPhone. A que vai ser lançada semana que vem.
A cara da Manuela despencou. Sem acreditar, ela foi até a caixa e arregalou os olhos gananciosos.
— Ah é. — Falei. — Pedi ao Tim Cook para me mandar o primeiro modelo do mundo, e agora ele é seu Felícia.
Felícia estava boquiaberta.
— Você pediu pessoalmente uma edição do iPhone que ainda não lançou em nenhuma parte do mundo e ele te deu?
— Bom, não. Não foi pessoalmente. Foi por e-mail. E ele embrulhou também. Com as próprias mãozinhas.
Tia Marta olhou para mim.
— E porque você não falou Tenácio?
O garçom tava enchendo minha taça de champanhe, outra vez.
— Bom… era uma surpresa muito boa para estragar assim. E não achei que ela fosse desprezar meu presente. — No fundo eu achei sim.
Manuela me olhava agora, quase sem fôlego. Sua expressão se mudou para ódio.
Outros convidados chegaram.
Tia Marta cortou o silêncio, falando para tirar fotos como os recém-chegados. Sua expressão de ódio não mudou. Garanto que todas as suas fotos a partir dali captaram sua expressão de ódio.
Fui me assentar em uma poltrona na varanda. Havia lá um grupo de garotos de smoking. Eles me viram e caminharam até mim depois de cochichar um pouco.
Um deles foi empurrado em minha direção.
    — Senhor, será que eu poderia pedir uma foto com você?
    Eu já estava cansado daquilo por hoje.
    — Com a gente também. — Falou outro rapaz do grupo.
    Mas sempre aceito tirar uma foto com fãs.
Eu lembro de quando eu vi meu ídolo no Rio de Janeiro uma vez, era jovem ainda. Jô Soares estava no Barra Shopping (que ele descanse em paz), eu tinha lido um de seus livros e gostei muito. Queria pedir um autógrafo para ele, mas fui completamente ignorado e um homem que estava com ele me empurrou. Devia ser um segurança. Eu nunca fiquei tão magoado na vida. Cheguei em casa e joguei o Xangô de Baker Street na privada, dando descarga várias vezes e chorando muito pela aquela humilhação. Jurei que jamais iria menosprezar um fã como Jô Soares fez comigo.
    Tirei foto com os rapazes e eles se afastaram sem falar comigo, apenas postando no Instagram. Odeio isso, é como meter e dizer que tem que ir embora.
    Já estava eu na minha quinta taça de champanhe. Ficando completamente bêbado, até que Tia Marta se aproxima de mim.
    — Tenácio, meu querido, posso falar com você um instante?
    Quando eu levanto me sinto mais bêbado ainda. Mas consigo segurar a onda e parecer sério.
    — Pode falar Tia.
    — Bom… aconteceu uma coisa. A Manuela quer que você vá embora.
    — O que? — Graças a Deus — Por quê?
    — Bom, ela tá dizendo que todo mundo está comentando sobre você e praticamente esqueceram dela. E…  
    — E…?
    — Ela disse que a sua camisa dentro do blazer é branca. E ela falou especificamente no convite para ninguém vir de branco na festinha dela.
    Devia ter umas duzentas pessoas na festa, quando olhei em volta, vi que mais da metade ainda olhava para mim.
    Então eu falei:
    — E você chamou a atenção dela, né? Disse que eu sou seu parente e que isso é um absurdo da parte dela. Não disse?
    Ela ficou mais hostil.
    — Não vou contestar minha filha no aniversário dela. — Ela falou com o braço cruzado, com aquela cara de bunda e tom de arrogância. — E você foi muito infantil com a situação do iPhone. Podia ter falado pra ela.
    — Poderia mesmo, na verdade, ela teria visto se tivesse tido o trabalho de abrir.
    — Você está tentando educar minha filha?
    — Não, não tem como, você já estragou a menina. — Agora mais pessoas estavam olhando para nós. Acho que falei isso alto demais.
    — Sai da minha festa! — Gritou Manuela. Do jeito que ela fazia desde que se conhecia por gente, do mesmo jeito que gritava com a mãe e com o pai quando eles se recusaram a fazer algo que ela gosta.
    Algumas pessoas olharam com nojo pra ela. Como se ela tivesse coberta de bosta.
    Olhei para a Tia Marta esperando (em vão) alguma atitude.
    — Você ouviu a garota, ela quer você fora.
    — Você tem coragem de se chamar de mãe? — Eu falei alto agora, senti o álcool me colocando prestes a dizer o que eu queria.
    — Você é que está errado, de maltratar minha filhinha que nunca me deu trabalho e nunca teve que ouvir um não. E não vai escutar um não de você.
    Meu sangue ferveu.
    — Que nunca te deu trabalho? Claro que não deu trabalho, ela só manda e você obedece, vocês dois. — E olhei para Tio Lúcio. — Uma mãe que acha que tem que ser amiguinha da filha e não uma mãe que educa de verdade.
    — É o que eu sempre falei com ela, essa menina manda nela, praticamente. — Tio Lúcio falou, ele já estava um tanto bêbado.
    — E você tá falando o que? É o pai mais ausente que eu já vi, e só aparece para fazer o que sua filha quer, na hora que ela quer. Vocês dois sempre pediam desculpas para ela depois de colocá-la de castigo.
    A multidão riu.
    — Tá vendo? Essa galera ri porque vocês são patéticos. Se sentem superiores por comprar coisas caras, mas na verdade está parcelando tudo no cartão de milhões de vezes. Tenta preencher o vazio de suas vidas, de seu casamento, comprando um monte de merda que vocês não precisam, só para chamar atenção. Uma vida baseada em aparências. Em se mostrar ricos e superiores. Ensinando sua filha desde pequena que ser rica é ser superior às pessoas. Mas na verdade, vocês são menos que nada.
    O silêncio dominou o salão, a música parou de tocar.
    Tia Marta permaneceu com o braço cruzado com aquela cara de pastelona pensando em dizer alguma coisa.
    Manuela começou chorar.
    — VÁ EMBORA!! - Manuela gritou, parecia possuída pelo demônio. Já estava acostumado.
    — Vou chamar o segurança, Tenácio. — Tia Marta.
    — Não precisa.
    Comecei a sair, fui em direção à escada. Liguei o telefone e chamei Pedro. Desci a escada, ouvi a música voltar a tocar atrás de mim. Saí do evento e esperei Pedro alguns minutos. Ele chegou.
    — Você não está lá nem quarenta minutos, o que aconteceu?
    — Pedro, manda preparar o Triplex, liga pro melhor bufe da cidade. Liga pro Paul da Absolut. Manda um suprimento para duzentas pessoas por dois dias para lá. Agora.
    — Imediatamente.
    Voltei correndo para a festa, subi as escadas, e gritei bem alto:
    A música parou de novo.
    Tia Marta apareceu.
    — Não mandei você ir embora?
    — Mandou. Só um recadinho.
    Subi em uma cadeira com estofamento de veludo preto, abri os braços e falei:
    — Estão todos convidados para uma festa no meu Triplex na Zona Sul. Pedi um carregamento de Absolut e tem uma piscina grande na cobertura. E o melhor de tudo, ninguém precisa puxar o meu saco.
    Abri o meu celular, pedi alguns segundos para a multidão. E voltei a falar…
    — Acabei de pagar por tudo a vista. Recebi todos os boletos do meu amigo Pedro, que está lá embaixo. Podem pegar o endereço com ele. Ele tá do lado do meu Rolls Royce. Festa começa em meia hora.
    Desci da cadeira, e caminhei em direção à escada, desci, saí do evento e fui para perto de Pedro.
    — Será que vai dar certo, Senhor?
    — Qual é, essa galera já está farta deste lugar, há dezesseis anos.
— Verdade, Senhor.
Pessoas começaram a sair.
— Pedrão, anota o endereço em uma placa grande.
Assim ele fez, tirou uma folha A3 do porta malas do carro, e começou a escrever. A pessoas se juntaram em volta do Rolls Royce e começaram a anotar. Em seguida, elas foram correndo para seus carros no estacionamento da frente.
Todos da festa saíram.
Os três anfitriões ficaram plantados na entrada.
As últimas coisas que Tia Marta e Manuela viram de mim foi o meu belo dedo do meio…
… molhado de cuspe..
Parcelem isso, em três vezes.